Autores: Angelo Bruno Donatoni e Vinicius Bergamasco
Em um cenário brasileiro em que mais de 90% das sociedades empresárias são familiares[1], aliado ao fato de que o Brasil possui uma das maiores cargas tributárias do mundo, planejar uma estrutura patrimonial para obter maior eficiência operacional, tributária e sucessória não é novidade.
Há quem diga que, por meio de mecanismos lícitos, é possível blindar o patrimônio e conservar a unidade patrimonial e familiar, impedindo que credores avancem sobre esses bens. Essa crença se fortalece ainda mais quando toda essa estrutura foi implementada há 30 (trinta) anos, sem qualquer declaração de nulidade. Mas será que essa visão é realmente adequada?
Ao analisar um caso de planejamento sucessório iniciado há mais de três décadas, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao julgar o Agravo de Instrumento n.º 2100150-52.2023.8.26.0000[2], deu provimento ao pedido de desconsideração da personalidade jurídica, por ter identificado a confusão patrimonial criada por meio do planejamento sucessório realizado pelo patriarca, ainda que as doações tenham sido realizadas antes da constituição da dívida cobrada.
No caso, um empresário do ramo de plásticos realizou, em vida, a doação integral do seu patrimônio aos herdeiros, com cláusulas de impenhorabilidade, indisponibilidade e reserva de usufruto. Posteriormente, a empresa da qual ele era sócio proprietário contraiu uma dívida junto a uma instituição financeira, e ele figurou como avalista.
Ocorre que diante do inadimplemento da Cédula de Crédito Bancária, a instituição financeira não encontrou bens em nome da empresa devedora e do empresário, de modo que o referido crédito foi cedido a uma seguradora, que após uma minuciosa investigação, identificou a estruturação sucessória adotada pelo empresário, que veio a falecer em 2018.
A apuração revelou que os bens doados pelos herdeiros foram integralizados em uma holding patrimonial, cuja finalidade era a administração de imóveis. Entre esses bens, estavam o terreno e o barracão utilizados pela empresa devedora, sem qualquer separação formal entre as atividades da holding e da indústria. Além disso, foram constatadas aquisições de imóveis em nome dos herdeiros sem comprovação de capacidade financeira, o que reforçou a tese de confusão patrimonial entre os bens do patriarca e os da holding.
Diante desse cenário, o Tribunal do Estado de São Paulo reconheceu a desconsideração inversa da personalidade jurídica, permitindo que os bens doados há décadas e os patrimônios adquiridos pelos herdeiros fossem utilizados para o pagamento da dívida, especialmente pelo fato de que não apenas o patrimônio do de cujus havia sido esvaziado, mas o da indústria também, o que a tornou insolvente.
É necessário pontuar que não há qualquer ilegalidade na doação de bens, em vida, aos herdeiros, com reserva de usufruto, pois tal medida jurídica é uma das possíveis estratégias sucessórias e patrimoniais para estruturar uma holding. Ocorre que, ao adotar tais medidas, sem deixar patrimônio capaz de saldar as dívidas contraídas, sem garantir lastro patrimonial a sociedade que tomou a Cédula de Crédito Bancário, agravados pela hipótese de que a indústria contraente da dívida utilizava aquela planta industrial sem distinção patrimonial, há fortes indícios de que a estrutura sucessória criada possa ser desconstituída.
E a razão para essa medida judicial é simples: por estarmos em um Estado Democrático de Direito, para que meu direito individual seja respeitado, necessariamente terei que respeitar o direito individual do próximo.
A Constituição Federal, ao delimitar, em seu artigo 5º, os direitos fundamentais e individuais que regem nossa sociedade, prevê expressamente, em seu inciso II, que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, e, em seu inciso XXII, estabelece que o direito de propriedade é garantido.
Por sua vez, o Código Civil, cumprindo seu papel infraconstitucional, regula, em seus artigos 391 e 927, que o devedor que inadimplir sua obrigação responderá com todos os seus bens. Além disso, qualquer pessoa que causar dano a outra, por ato ilícito (omissão, negligência ou imprudência), ficará obrigada a repará-lo.
Ao interpretar essas e outras normas legais, percebe-se que, para realizar um planejamento sucessório eficiente, não basta que o titular do patrimônio pense apenas na eficiência jurídica vinculada aos benefícios de seu microssistema familiar. Ele deve atentar, também, à garantia e à segurança de todo o ecossistema tributário e dos credores, sob pena de o planejamento ser considerado ilegal e resultar em consequências como a desconsideração da personalidade jurídica, identificada e aplicada ao caso concreto.
Além disso, como pilar determinante para a manutenção da eficiência do planejamento sucessório, é imprescindível estabelecer, por meio de protocolo familiar, a efetiva divisão administrativa e profissional das atividades vinculadas à holding, evitando assim a configuração de confusão patrimonial.
Esse é apenas um dos exemplos que demonstram que não há blindagem patrimonial absoluta, pois um planejamento patrimonial que não observe a garantia dos créditos de terceiros e não promove a clara divisão administrativa da atividade e da holding, por exemplo, poderá acarretar o alcance dos referidos bens por meio da desconsideração da personalidade jurídica.
Dessa forma, aqueles que desejam proteger seu patrimônio e garantir uma sucessão eficiente devem alinhar suas estratégias e perspectivas, assegurando que o ecossistema que abrange credores esteja em perfeita sintonia, para evitar dores de cabeça futuras e impedir que toda a idealização vá por água abaixo.
Portanto, é fundamental contar com um olhar técnico especializado sobre esses assuntos, a fim de evitar que situações como essa assombrem as famílias no futuro e venham a devastar o patrimônio adquirido ao longo de toda uma vida. Mais do que isso, este caso serve de alerta para aqueles que propagam a ideia de uma suposta blindagem patrimonial.
[1] Disponível em: https://exame.com/negocios/qual-e-o-grande-desafio-a-longevidade-das-empresas-familiares-brasileiras-segundo-a-dom-cabral/. Acesso em 12.02.2025.
[2] “Agravo de Instrumento. Desconsideração da Personalidade Jurídica. Disposições patrimoniais anteriores à dívida executada. Critério cronológico que não afasta, por si só, a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica. Desvio de finalidade e confusão patrimonial. Ocorrência. Simulação. Aquisição de bens com a finalidade de desenvolver a atividade jurídica. Registro de múltiplos imóveis em nome dos filhos menores. Usufruto registrado em nome dos genitores e terrenos convertidos em parque industrial. Transferência de bens por valores insignificantes. Venda posterior a terceiros em valor vultuoso. Valor da venda transferido a fundo imobiliário em nome da pessoa jurídica Agravada. Renúncia a herança com intuito de fraudar credores. Desconsideração da Personalidade Jurídica concedida. Recurso provido”
Sobre os autores:
Angelo Bruno Donatoni: Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Estado de Mato Grosso - UFMT. Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso. Possui especialização em Advocacia Empresarial.
Foi professor voluntário da Universidade Federal de Mato Grosso de Legislação Empresarial e Societário, junto ao Departamento de Ciências Contábeis. Atualmente, é professor junto a Universidade de Cuiabá - UNIC, nas matérias de Títulos de Crédito e Recuperação Judicial e Falência e em Direito Empresarial – Teoria Geral e Direito Societário. Ex-Vice-presidente da Comissão Estadual de Direito Empresarial, junto a OAB/MT.
Vinicius Bergamasco: Advogado. Graduado em Direito pela Universidade de Cuiabá - UNIC. Pós-graduando em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
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