Autor: Gabriel Novis Neves Neto A cessão de crédito é um negócio jurídico, no qual o titular de um crédito (cedente) transfere a um terceiro (cessionário), todos os direitos inerentes a este, incluindo seus acessórios e garantias. Sendo assim, ocorre uma efetiva substituição do titular do crédito, mantendo-se para tanto, os demais elemento da relação creditícia. Tal instituto é regulado pelos artigos 286 a 298 do Código Civil (CC), sendo amplamente utilizado no cotidiano comercial.
Para que a cessão seja eficaz, conforme preceitua o artigo 290[1] do referido dispositivo legal, é necessário que o devedor (cedido) seja notificado deste negócio jurídico. Em relação ao cedente de título oneroso, este responderá, em regra, apenas pela existência do crédito, ou seja, sua veracidade, a ausência de vícios ou defeitos, a sua titularidade, que não tenha sido cedido previamente e que não haja condições suspensivas ou resolutivas pendentes, nos moldes do artigo 295, CC[2].
A Lei nº 11.101/05 (LREF), mais conhecida como a Lei de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência foi profundamente reformada com a promulgação da Lei nº 14.112/2020. Entre as alterações legislativas provocadas por esta nova Lei, destaca-se a matéria referente a cessão de créditos trabalhistas, já que houve a revogação do §4º, do art. 83[3], o qual previa que os créditos trabalhistas cedidos a terceiros seriam considerados quirografários. Ainda, foi inserido o §5º no art. 83, em que “para os fins do disposto nesta Lei, os créditos cedidos a qualquer título manterão sua natureza e classificação.”
Nas palavras do doutrinador Marcelo Barbosa Sacramone tal mudança na Lei visou “gerar o estímulo para que o credor trabalhista, caso o desejasse, pudesse ceder respectivo crédito mediante o pagamento de um preço, o qual poderia atender de maneira mais tempestiva à suas necessidades[4].
Deste modo, créditos advindos da legislação trabalhista ganharam a atenção do mercado secundário de crédito, em especial dos Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios, visto que possuem prioridade em relação aos demais créditos concursais, desde que limitados a 150 (cento e cinquenta) salários-mínimos por credor.
Entretanto, urgiu a dúvida no cenário brasileiro se o disposto no §5º do art. 83 seria aplicado aos casos em que o pedido de recuperação judicial ou a decretação da falência tenham ocorrido em momento anterior a vigência da Lei nº 14.112/2020, porém a cessão de crédito trabalhista em tempo posterior.
Cumpre salientar que o art. 5º, 1º, II, Lei nº 14.112/2020[5], estabeleceu que as novas regras de classificação de crédito na falência, só seriam aplicadas às falências decretadas, inclusive as decorrentes de convolação, e aos pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial ajuizados após o início da vigência da Lei.
Neste compasso, há decisões no E. Tribunal de Justiça de São Paulo[6] garantindo a aplicação do §5º art. 83, as cessões de créditos trabalhistas em processos de recuperações judiciais ou falências anteriores a Lei nº 14.112/2020, desde que o negócio jurídico tenha sido celebrado após sua promulgação, de maneira que tais créditos mantiveram sua natureza após a cessão.
Entre os pontos aduzidos nos Agravos de Instrumento nº 2116206-29.2024.8.26.0000 e 2101562-81.2024.8.26.0000, ambos de relatoria do Desembargador Paulo Roberto Grava Brazil, destaca-se o entendimento de que como os §§ 4º e 5º, do art. 83, da Lei de Recuperação Judicial e Falência não dizem respeito à classificação dos créditos na falência, mas sobre a natureza do crédito cedido a terceiro, não haveria a aplicação do direito intemporal previsto na Lei nº 14.112/2020, de sorte que seria possível a aplicação imediata do §5º. Ademais, tal interpretação estaria em consonância com o pretendido pelo legislador.
Contudo, pontua-se que tal posicionamento na jurisprudência ainda não é pacífico, de sorte que há acórdãos no sentido contrário[7], qual seja na aplicação do §4º do art. 83 a estes processos, e consequentemente, fazendo com que os créditos trabalhistas percam sua natureza alimentar e passem à categoria dos créditos quirografários.
Portanto, o interessado na aquisição de créditos trabalhistas em recuperações judiciais ou falências anteriores à Lei nº 14.112/2020, deverá procurar um advogado especializado na matéria, a fim de não ser surpreendido com a reclassificação indesejada de seu crédito e seu possível default.
Sobre o Autor: Gabriel Novis Neves Neto é advogado do Oliveira Castro Advogados. Formado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2023). Pós Graduando em Direito Empresarial pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais
[1] Art. 290. A cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita.
[2] Art. 295. Na cessão por título oneroso, o cedente, ainda que não se responsabilize, fica responsável ao cessionário pela existência do crédito ao tempo em que lhe cedeu; a mesma responsabilidade lhe cabe nas cessões por título gratuito, se tiver procedido de má-fé.
[3] Art. 83. A classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem:
§4º Os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários
[4] SACRAMONE, Marcelo Barbosa; Comentários à Lei de Recuperação Judicial – 3ª edição 2022 Saraiva Jur, 2022. P. 442
[5] Art. 5º Observado o disposto no art. 14 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil) , esta Lei aplica-se de imediato aos processos pendentes.
§ 1º Os dispositivos constantes dos incisos seguintes somente serão aplicáveis às falências decretadas, inclusive as decorrentes de convolação, e aos pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial ajuizados após o início da vigência desta Lei:
II - as alterações sobre a sujeição de créditos na recuperação judicial e sobre a ordem de classificação de créditos na falência, previstas, respectivamente, nos arts. 49 , 83 e 84 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.
[6] TJ-SP - Agravo de Instrumento: 2116206-29.2024.8.26.0000, Monte Alto, Relator: Grava Brazil, Data de Julgamento: 27/09/2024, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 27/09/2024; TJSP – Agravo de Instrumento: 2101562-81.2024.8.26.0000, São Paulo, Relator: Grava Brazil, Data de Julgamento: 12/08/2024, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 12/08/2024; TJ-SP – Agravo de Instrumento: 2189360-51.2022.8.26.0000, Relator: João Pazine Neto, Data de Julgamento: 07/02/2023, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 08/02/2023.
[7] TJSP – Agravo de Instrumento: 2306391-58.2023.8.26.0000, Palmital, Relator: Alexandre Lazzarini, Data de Julgamento: 19/02/2024, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 19/02/2024; TJSP – Agravo de Instrumento: 2274389-06.2021.8.26.0000, São Paulo, Relator: Alexandre Lazzarini, Data de Julgamento: 26/04/2022, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 26/04/2022; TJSP – Agravo de Instrumento: 2036294-51.2022.8.26.0000, São Paulo, Relator: Alexandre Marcondes, Data de Julgamento: 20/07/2022, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 20/07/2022;
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