Autora: Gabriella Gonçalves
A recuperação judicial, prevista pela Lei nº 11.101/2005, é um mecanismo jurídico que visa reestruturar empresas em dificuldades financeiras, proporcionando uma oportunidade de reabilitação e evitando a falência. O objetivo principal desse processo é permitir que a empresa recupere sua capacidade produtiva e financeira, garantindo, ao mesmo tempo, a preservação dos empregos e dos interesses dos credores.
Nesse sentido, para que o processo seja validado e o plano de recuperação judicial homologado, o juiz deve analisar uma série de documentos e requisitos legais. Entre os principais requisitos, destaca-se a apresentação da Certidão Negativa de Débitos (CND), um documento que atesta a regularidade fiscal da empresa perante a Receita Federal, os fiscos estaduais e municipais.
No cotidiano, a exigência dessa certidão tem gerado intensos debates, especialmente sobre sua necessidade e os impactos no processo de homologação do plano de recuperação judicial.
Porém, antes de entrar nesses debates, é importante esclarecer sobre o que se trata a Certidão Negativa de Débitos (CND) exigida, que nada mais é que um documento oficial emitido pelos órgãos competentes da Receita Federal, das Secretarias de Fazenda Estaduais e das Prefeituras Municipais, que comprova que a empresa está em dia com suas obrigações fiscais, como o pagamento de tributos, contribuições previdenciárias e outras dívidas tributárias. Ou seja, quando uma empresa está regular perante essas autoridades, ela pode obter a CND, que atesta sua situação de conformidade com a legislação fiscal.
No entanto, o principal desafio relacionado à exigência da CND na recuperação judicial está no fato de que muitas empresas em dificuldades financeiras acumulam dívidas tributárias consideráveis, que são justamente a razão de sua insolvência ou problemas financeiros.
Nesse cenário, a exigência da CND como condição para a homologação do plano de
recuperação judicial pode se tornar um obstáculo significativo para o andamento do processo, uma vez que a empresa pode não ser capaz de regularizar sua situação fiscal imediatamente.
Desmistificado a natureza da CND, é importante frisar o momento, no processo recuperacional, em que essa certidão é exigida.
De acordo com a legislação falimentar, o plano de recuperação judicial precisa ser aprovado pelos credores e, posteriormente, homologado pelo juiz. No entanto, para que o plano seja homologado, a empresa precisa comprovar que está regular com suas obrigações fiscais.
Por isso, a exigência de apresentação da CND como parte desse processo está prevista no artigo 57 da referida lei, que estabelece que a empresa em recuperação judicial deve estar regularizada fiscalmente para que o juiz possa homologar o plano.
A intenção do legislador, ao impor essa exigência, é garantir que a empresa, ao buscar sua recuperação, esteja, ao menos, em conformidade com suas obrigações fiscais.
Esse requisito tem um caráter preventivo e protetivo, evitando que empresas com um histórico de inadimplência tributária abusiva se utilizem do processo de recuperação judicial para fraudar o sistema, transferindo suas dívidas para os credores de forma ilícita.
No entanto, como observa Fábio Ulhoa Coelho (2015), a rigidez dessa exigência pode ser contraproducente, pois muitas empresas que realmente necessitam da recuperação judicial não conseguem obter a CND devido ao acúmulo de débitos fiscais.
Para muitas empresas em dificuldades financeiras, a própria razão pela qual recorrem à recuperação judicial é a incapacidade de pagar seus tributos e contribuições. Em casos como esses, exigir a CND como condição para a homologação do plano de recuperação pode resultar em um "impasse jurídico", pois a empresa não consegue regularizar seus débitos fiscais enquanto ainda se encontra no processo de reestruturação financeira.
Isso cria uma contradição aparente: a empresa necessita da recuperação judicial para solucionar suas pendências fiscais, mas não pode ter o seu plano homologado sem uma certidão que comprova a regularização fiscal, que ela não consegue obter devido à própria crise financeira.
Ricardo Negrão (2014) aponta que, nesse cenário, o Judiciário precisa adotar uma postura mais flexível, permitindo que o processo de recuperação judicial avance, mesmo diante da ausência de CND, desde que o plano de recuperação seja viável e a empresa demonstre boa-fé e intenção de regularizar suas pendências fiscais ao longo do tempo.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, no passado, em diversas decisões, demonstrou que a ausência de CND não deveria ser um impeditivo para a homologação do plano de recuperação judicial, desde que a empresa apresente um plano de reestruturação viável e que contemple, de forma clara, o parcelamento ou a quitação dos débitos tributários no futuro.
Assim, no Recurso Especial nº 1.268.532/PR, a Corte considerou que a regularidade fiscal não precisa ser obtida antes da homologação do plano, desde que o plano de recuperação estabeleça um cronograma que permita a quitação dos débitos tributários de maneira realista e compatível com a capacidade financeira da empresa.
Conduto, após a edição da Lei nº14.112/2020, mudou-se o entendimento porque a lei implementou um programa legal de parcelamento factível.
Assim, 17/10/2023, na contramão dos entendimentos anteriores, a 3° Turma do STJ, em decisão de relatoria do ministro Ministro Marco Aurélio Bellizze no REsp nº 2.053.240/SP, julgou pela necessidade de apresentação das certidões negativas de débito tributário (CND) ou certidões positivas com efeito de negativa para o deferimento da recuperação judicial, pois “Não se afigura mais possível, a pretexto da aplicação dos princípios da função social e da preservação da empresa vinculados no art. 47 da LRF, dispensar a apresentação de certidões negativas de débitos fiscais (ou de certidões positivas, com efeito de negativas), expressamente exigidas pelo art. 57 do mesmo veículo normativo, sobretudo após a implementação, por lei especial, de um programa legal de parcelamento factível, que se mostrou indispensável a sua efetividade ao atendimento a tais princípios.”
Contudo, essa mudança de entendimento, na visão de Sacramone (2021), o legislador ao condicionar a concessão da recuperação judicial à demonstração de que todas as obrigações tributárias foram satisfeitas ou parceladas nos termos do Fisco, estaria não só contrariando a garantia constitucional de igualdade de tratamento entre todos os agentes, mas também as demais normas da LRE e o próprio interesse econômico da Fazenda Pública no recebimento da maior quantidade de seus créditos, e inviabilizaria o próprio instituto da recuperação judicial.
Na prática, observa-se que em diversos estados brasileiros essa exigência não está sendo afastada em prol do princípio da preservação da empresa. A exemplo, a Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, se posicionou pela exigência de CND para homologação do plano de recuperação judicial, utilizando como paradigma a decisão proferida no REsp nº 2.053.240/SP. Como, frisou a Relatora, Desa. Serly Marcondes[1], a apresentação das CND’s “constitui exigência inafastável, cujo desrespeito importará na suspensão da recuperação judicial”.
Em relação ao que acontece se o devedor não apresentar as referidas certidões, há entendimentos diversos, para alguns deve haver a convolação em falência, para outros simplesmente extinguir o processo ou suspendê-lo, mas a realidade é que se a empresa precisa da recuperação judicial ao não ter concedida pela exigência de CND, suas chances de reorganização são baixas, e a possibilidade de falir é uma realidade breve.
Portanto, como ainda não se sabe como todos os tribunais vão agir frente a sistemática exigência, é necessário para o bem e futuro das empresas viáveis em crise que continuem afastando o art.57 DA LRE para a concessão da recuperação judicial, satisfeitas as outras condições.
Isso porque, a recuperação judicial deve ser vista como um instrumento de reabilitação da empresa, priorizando sua continuidade e a preservação de empregos, sem renunciar à necessidade de que a empresa honre suas dívidas de maneira justa e viável.
[1] TJ-MT - AGRAVO DE INSTRUMENTO: 1030762-96.2023.8.11.0000, Relator: NÃO INFORMADO, Data de Julgamento: 03/04/2024, Quarta Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 05/04/2024
Commentaires